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Foto do escritorRicardo Barboza Alves

Os traços brasileiros em uma releitura da obra “Raízes do Brasil”

Ricardo Barboza Alves

Carmo Gabriel

Augusto Hauber Gameiro

Os caminhos podem ser os mais variados, seja em qualquer área de vivência das relações constituídas pela espécie humana em sua trajetória pelos ecossistemas do planeta. Nossas migrações começaram como mera forma de encontrar os elementos vitais para a sobrevivência, a alimentação por meio de animais ou coleta de plantas. Essas migrações permitiram o alargamento da espécie humana nos mais diversos habitats do planeta.

Para efetuar esses deslocamentos, os humanos contaram com sua capacidade distinta de poder pensar, refletir e criar instrumentos que possibilitaram controlar o ambiente. Assim, com a evolução das atividades humanas, começou-se o processo de sedentarização, viver permanente em um lugar, visando equipá-lo com os instrumentos indispensáveis para o funcionamento e a manutenção da vida do grupo naquele local.

Com essa performance, a espécie humana sempre foi um fator transformador dos lugares em que penetrou, alterando-os significativamente conforme fossem as alternativas para acumular os itens de seu interesse. Assim, como ser social, os humanos deixam marcas e estigmas de acordo com seus valores culturais, políticos, sociais e econômicos, o que modifica e imprime novas formas para sistematizar o domínio do território.

Por intermédio dessa condução, o espaço geográfico dominado transforma-se como local de vivências e das relações com os seres vivos e as paisagens, e assim, transforma-se em lugar das relações imateriais e materiais dos seres vivos. Portanto, as pessoas passam a desfrutar como palco cotidianamente dessas marcas que ficam imprimidas na sua forma de ser como indivíduo e que fazem parte do processo de formação dos valores culturais vividos naquele lugar. Nessa relação de intercâmbio dos valores constroem-se as marcas da sociedade e, isso passa a ser reproduzido pelos habitantes.

Isso posto, toda sociedade tem um processo de formação e sustentação de ideias consonante aos agentes que mediaram a conquista de determinado espaço geográfico. A forma de dominação deixa marcas mais sutis de se ver e marcas mais profundas que não sabemos como foram conduzidas dentro do local. De acordo com Bloch (2001), faz-se necessário analisar a força motriz dos caminhos seguidos com os processos desenvolvidos com as ações humanas, visando compreender a realidade do processo formativo dos locais.

Tem-se com isso, a busca por conhecimento, o que implica buscar referências que estudaram o processo de formação dos traços organizados no local. Sabe-se que as representações visam fazer a população estar em contato com as instituições representadas pelos governantes (BEARD, 2017). À vista disso, precisa-se compreender as intenções das representações desenvolvidas pelos governantes, como forma de manter seu domínio no território e, ainda, perceber o que ficou presente nas relações culturais do local.

Desta forma, a obra “Raízes do Brasil” (Holanda, 1996), tornou-se um clássico em relação aos condicionantes implantados por Portugal, onde houve um conjunto de análise de quesitos relacionados às relações de organização do espaço territorial e suas permanências dentro do espectro da formação constitutiva do território brasileiro. Por isso, fez-se o processo de estudo da obra “Raízes do Brasil” em busca de aumentar nosso entendimento sobre a formação do Brasil durante um semestre no “Grupo de Estudo da História, da Agropecuária e da Ecologia" (GEHAE), vinculado ao Laboratório de Análises Socioeconômicas e Ciência Animal (LAE), da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo.

Primeiro, o estudo parte da análise do território peninsular no qual entende como uma zona de fronteira e de cruzamento de vários povos com aspectos singulares em relação ao teatro continental. Assim, analisa alguns determinantes culturais dos povos ibéricos, espanhóis e portugueses, focando especialmente nas relações dos portugueses. Nesse esforço, nos mostra como Portugal e Espanha por ser uma zona fronteiriça, entraram somente no período das Grandes Navegações no conjunto do cenário europeu. Em função disso, os portugueses criaram um tipo de sociedade à margem das congêneres europeias, marcada com a cultura da personalidade caracterizada pela frouxidão da estrutural social e a falta de hierarquia organizada. Assim, prevalecem elementos anárquicos devido ao caráter individual da busca por prestígio e privilégios na sociedade portuguesa.

O sentido de hierarquia manteve-se sobre controle dos interesses pessoais, o que se evidencia pela nobreza portuguesa nunca ter desejado ser uma aristocracia fechada. Havia um convívio próximo da nobreza com o povo, nos quais não ocorria distinções acentuadas nas relações de vivência. Assim sendo, a comida era muito parecida entre os grupos sociais e os nobres entregavam seus filhos para serem criados pelos pobres. Essa sociedade personalista permeada pela elasticidade das relações sociais possibilitou aos portugueses uma maior capacidade de adaptação às novas formas surgidas com a evolução da vida social. Isso permitiu que a burguesia mercantil conseguisse cristalizar sua penetração sem barreiras e resistências, visto que somente precisou se mesclar fazendo uso da amizade com as antigas classes dirigentes e guiar-se pela tradição.

Em relação ao culto do trabalho, coloca-se a atividade mecânica e manual como não valorativo do ser humano. Todos buscam incessantemente o ócio - a forma mais importante -, uma vez que a ociosidade dignifica a vida e entrega status social. Por haver uma exaltação extrema da personalidade, os indivíduos vivenciam a solidariedade meramente por interferência da vinculação dos sentimentos entre amigos e no recinto doméstico. E, a partir do processo dos empreendimentos marítimos, a atividade agrícola portuguesa passou a ser relegada porque as aventuras marítimas se aproximam do caráter aventureiro tão benquisto aos portugueses.

Na dinâmica do processo de colonização, Portugal contou com diversas agruras como a carência de mão de obra, a grande extensão territorial, as diferentes paisagens naturais e as condições ecológicas e climáticas do Brasil. Ressalta-se o pioneirismo português na conquista do trópico, contudo, evidencia não ter sido uma vontade construtiva e enérgica, prevalecendo o desleixo e o abandono. Assim, o processo colonizador do Novo Mundo foi moldado pelo caráter aventureiro, contado com papel limitado do caráter trabalhador. Diante disso, a América Portuguesa fundamenta-se em lugar de passagem tanto para o governo como para os súditos, fundamentada no caráter de feitorização das práticas agrícolas desenvolvidas baseadas nos pressupostos da exploração mercantilista.

Apesar da aversão ao trabalho braçal, a estrutura colonial baseou-se na atividade agrícola organizada na monocultura, na mão de obra escrava, no latifúndio e na exportação, fato bastante conhecido na literatura sobre o processo de colonização. Sem embargo, coloca em pauta que o motivo da utilização dos métodos rudimentares na agricultura tornou-se comum porque os portugueses não tinham energia paciente e sistemática para melhorar os processos produtivos. A grande lavoura tinha a natureza perdulária, uma vez que a busca primordial era formar riquezas sem precisar contar com grande esforço mental. Vigorou entre os colonizadores a lei do pouco esforço, onde os portugueses pediam muito da terra, visando retirar excessivas benesses sem sacrifícios.

Em relação ao convívio com outros povos, evidencia-se a extraordinária plasticidade social dos portugueses. Povo mestiço permeado pela ausência completa de orgulho de raça, assim a miscigenação não foi nenhuma novidade no Brasil, já era um traço carregado pelo povo português. No que diz respeito aos indígenas, traça as características observadas pelos portugueses, como: ociosidade, imprevidência, intemperança e aversão a todo trabalho disciplinado. Também, apresenta o reconhecimento civil de forma tutelada com o intuito de distanciá-los dos pretos escravizados.

Também tratou da escravização dos pretos como parte da estrutura colonial, porém não houve um aprofundamento sobre a vida dos escravizados e suas relações. Cita os escravizados de ganho que existiam nas vilas e nas cidades, sem muitos detalhes, e não coloca a vida dos escravizados da vida rural com aprofundamento. No entanto, salienta que a maioria das fortunas geradas com o tráfico negreiro era de portugueses.

Segundo Holanda (1996), a abolição da escravidão (1888) traduz um momento singular marcando o processo divisório de duas épocas, visto que o sentimento lusófobo (sentimento de hostilidade contra Portugal) conduziu o processo de abolição. E, com a abolição, os capitais da atividade negreira foram desviados para os novos negócios, colocando o país em um surto industrial, tendo como principal agente o Barão de Mauá.

Um forte traço social integralizado do passado colonial, aparecerá com a marca firme da presença da família por intermédio do pátrio poder ilimitado na vida cotidiana da sociedade brasileira, e isso persegue os indivíduos em qualquer esfera da vida social. Assim, prevalecem os laços afetivos entre os familiares e os amigos, predominando na sociedade valores particularistas menos afeitos às mudanças, no qual o ritmo das transformações passa pelo controle dos interesses particulares que o indivíduo carrega da família e dos laços afetivos.

Ressalta que as cidades eram precárias, vivendo uma ditadura dos domínios rurais sob controle dos grandes fazendeiros (“humanos bons”) durante o período colonial. Assim, as modificações das novas formas passam por uma improvisação forçada, já que a burguesia urbana possui sua origem moldada pela mentalidade da Casa Grande. Essa condição torna-se naturalizada porque o recrutamento das pessoas requeridas para os cargos administrativos provinha da elite agrária. Em razão disso, o personalismo invade a vida urbana e ataca todas as profissões sem exclusão, atingindo também as profissões mais humildes.

A análise transcorre por várias situações implantadas pela administração da coroa portuguesa para efetivar o domínio do território e conseguir retirar riquezas para a metrópole congruente com os princípios da exploração colonial. O Brasil despertou a curiosidade de outros povos europeus que mandavam visitantes para observar nossas condições naturais e sociais. Assim, surgiram vários relatos sobre os modos de vida dos brasileiros, em que sempre ressaltavam a cordialidade do brasileiro como a maior contribuição do Brasil para o mundo.

De acordo com Holanda (1996), essa cordialidade era uma máscara, na qual a atitude polida era um artifício de resistência, um disfarce implantado por meio da hospitalidade, da generosidade e do trato afável devido à cultura personalista dos brasileiros. O indivíduo faz uso da cordialidade para manter sua supremacia perante o social, mantendo assim as relações interpessoais em seu círculo de amizades e de convivência conforme nossa herança da família patriarcal colonial. Esses valores da personalidade individual não admitem às atividades rotineiras e monótonas e dificilmente consegue conviver com um sistema exigente e disciplinador, visto que os indivíduos sempre buscam a satisfação própria, seja em quaisquer áreas de convivência na esfera da sociedade.

A obra “Raízes do Brasil”, nasce com uma forma nova de análise das relações formativas do Brasil com um vigor em determinados lances das estruturas deixadas de lado antes do seu lançamento. Sérgio Buarque de Holanda fez várias mudanças na obra conforme seus estudos eram ampliados, desenvolvendo, assim, a busca de melhor entendimento do quadro da formação. Com o passar dos anos, a obra tornou-se um clássico na ótica do processo brasileiro, por isso, torna-se sempre importante ter sua leitura para suscitar a ampliação dos entendimentos. Em virtude disso, suas referências devem ser compreendidas dentro do contexto da publicação e, assim, ser um elemento disparador para que se possa continuar os estudos dos aparatos constitutivos da constituição do Brasil, visando um melhor entendimento de nossa organização.

Cabe ressaltar que se fez somente um recorte dessa obra, partindo de alguns pontos voltados aos interesses do grupo de estudo e que a leitura traz várias outras nuances analisadas pelo autor. O importante é continuar a caminhada em busca de compreensão das vivências presentes na nossa sociedade, sendo fundamental fazer o convívio com determinadas obras, como “Raízes do Brasil”, como uma maneira de ampliar as ferramentas para continuar a busca por conhecimento gerador de novos entendimentos sobre a marcas referenciais do país.

Bibliografia

BEARD, Mary. SPQR: uma história de Roma Antiga. São Paulo: Planeta, 2017.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


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