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A importância do leite no combate à fome histórica no Brasil

Carmo Gabriel da Silva Filho¹

Ricardo Barboza Alves² Augusto Hauber Gameiro³


¹Zootecnista, Mestrando em Desenvolvimento Territorial e Sistemas

Agroindustriais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Pesquisador do

Laboratório de Análises Socioeconômicas e Ciência Animal (LAE)


² Historiador, Geógrafo e Pedagogo. Mestre em História, Coordenador do Grupo de Estudo da História da Agropecuária e da Ecologia (GEHAE) e Pesquisador do Laboratório de Análises Socioeconômicas e Ciência Animal (LAE).


³Engenheiro Agrônomo, Professor do Departamento de Nutrição e Produção

Animal na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de

São Paulo e Pesquisador do Laboratório de Análises Socioeconômicas e

Ciência Animal (LAE)


A produção de leite é algo presente na história econômica do Brasil desde os tempos de colônia até os dias de hoje. De início tinha-se o abastecimento vinculado aos grandes núcleos de produção e exploração, como os engenhos de cana de açúcar no Nordeste, as minas de ouros em Minas Gerais e às lavouras de café, especialmente na região do Vale do Paraíba.

Em seguida, com o crescimento das cidades e a consequente industrialização do país, as fazendas produtoras de leite, concentradas especialmente no eixo sul-sudeste, abasteciam a emergente população urbana com leite e derivados. Este período compreende o início do século XX, quando ocorreu o surgimento de importantes cooperativas do setor.


Outro evento de destaque que marca a trajetória do setor lácteo nacional ocorreu em meados dos anos 90. Nesse período houve a abertura comercial brasileira, permitindo a participação internacional no mercado interno. Isso gerou um efeito de pressão sobre a cadeia produtiva nacional para aumentar a competitividade, em termos de custo, produtividade e qualidade dos produtos.


Atualmente tem-se um setor que consegue atender toda a demanda interna, com grupos de produtores tecnificados, com rebanhos especializados. Mas também um contingente diverso de médios e pequenos produtores, responsáveis pela maioria do montante produzido no país, que abastecem os mercados regionais, sejam eles formais ou informais. É importante destacar também a presença de produções voltadas somente à subsistência da família rural.



É neste último contexto, de pequenas, médias e produções para autoconsumo, que reside uma importante característica da pecuária de leite. A presença destes animais produtores de leite, sejam eles bovinos, caprinos ou bubalinos, auxilia no combate à fome e à subnutrição. Isso se dá por conta das características nutricionais do leite, que fornece proteínas e minerais importantes para o desenvolvimento fisiológico do ser humano.


Quem atesta isso, no contexto brasileiro do início do século passado, é o médico Josué de Castro, na sua obra clássica “Geografia da Fome”, do qual discutiremos neste artigo. Em tempos em que a fome ainda é, lamentavelmente, uma realidade para milhões de brasileiros e num momento em que a concentração da produção de leite está aumentando, é importante resgatar historicamente a relação do leite, enquanto alimento e atividade econômica, com a fome e a subnutrição.


Nascido na cidade do Recife, no ano de 1908, Josué Apolônio de Castro é autor de um dos mais emblemáticos livros a respeito da fome e subnutrição no Brasil. O livro “Geografia da Fome” foi publicado em 1946, com grande repercussão internacional, sendo traduzido para cerca de 24 idiomas.


Ao adentrar em cada região do Brasil, Josué busca evidenciar os elementos inerentes àquela localidade que de alguma maneira determinam ou influenciam nos fenômenos relacionados à fome e à subnutrição. Aqui reside uma das riquezas do método proposto pelo autor, qual seja, o olhar multidisciplinar, complexo e humanístico para uma questão tão importante como a fome.


Desta maneira são levantados aspectos edafoclimáticos referentes ao clima, solo; dados sobre a fauna e flora; formação histórica e cultural, evidenciando a formação dos tipos físicos e hábitos alimentares; e as atividades econômicas presentes, principalmente aquelas relacionadas à produção de alimentos. É importante também mencionar que aspectos relativos à fisiologia humana e dos quadros clínicos da fome e subnutrição também são considerados em larga medida na obra de Josué de Castro.

A primeira menção à produção de leite e aos produtos lácteos no livro, é referente à região Amazônica, que podemos compreender como sendo uma porção significativa da atual região Norte. Nesta área o autor evidencia as carências referente ao consumo de fonte de proteínas de origem animal, dentre elas o leite. Cabe destaque à informação referente à cidade de Belém como registro histórico, que diz:


“O leite existe apenas em algumas poucas cidades importantes, que contam com o abastecimento embora reduzido e sem controle sanitário. Assim, em Belém, que é a mais importante cidade da Amazônia, o consumo diário de leite era em 1950 de cerca de 20 gramas por pessoa. Trinta vezes menos que o consumo médio dos Estados Unidos da América. Os derivados do leite, tais como manteiga e o queijo, quase nunca são vistos nesta zona” (CASTRO, 1984, p. 60).


A ausência ou baixa presença desses alimentos é justificada pelas condições naturais da região. Com um regime de chuvas intenso, sendo muitas áreas alagadiças e com área de mata densa, a criação animal se torna limitada ou até mesmo impossível. Além disso, as condições à época – e hoje não são muito diferentes – impediam que as mercadorias de outras regiões circulassem de maneira a atender as áreas mais afastadas. Inclusive, este desabastecimento afetou muitos seringueiros que estavam no interior da floresta durante o ciclo da Borracha, principalmente no atual estado do Acre.


Embora se tenha este quadro, Josué de Castro destaca um exemplo positivo. Se trata da Ilha do Marajó, no qual foram introduzidos búfalos africanos, que tornaram uma fonte importante de carne e leite, ainda que de maneira limitada e pouco racionalizada. Sobre este aspecto afirma o autor:


“...no Instituto Agronômico do Norte foi introduzido em Marajó o búfalo africano, animal rústico e de relativas possibilidades de adaptação econômica nesse meio hostil a raças selecionadas e de alta produção, seja de carne, seja de leite. Ainda assim, e contrariando o esforço de racionalização da pecuária, essa rusticidade do búfalo está sendo explorada no sentido de não lhe ser prestada qualquer espécie de assistência zootécnica, e as adaptações a que o meio o obriga nem sempre são favoráveis aos interesses econômicos e aos fins sociais” (CASTRO, 1984, p. 59).


Ao final o autor compreende que o estabelecimento de núcleos populacionais na região, com planos econômicos bem estabelecidos, explorando de forma racional a pesca em grande escala e o melhoramento da pecuária local, associado com o aproveitamento dos frutos silvestres, consistia numa medida importante para reduzir as carências alimentares relativas às proteínas.


O leite aparece de forma destacada na área do Sertão do Nordeste, região compreendida como o interior do continente, que não estava ocupada pela cana-de-açúcar. Sobre esta localidade, há um importante comentário, que diz:


“...a inexistência das minas no sertão nordestino e a pouco serventia das suas terras para uma agricultura de grande rendimento, como se praticava na zona da mata, cedo se desviou a atividade do colono sertanejo para a pecuária” (CASTRO, 1984, p. 177).


Conforme o relato do autor, percebe-se a presença da criação de animais nesta região, desde os remotos tempos da colonização. Ela foi intensificada durante o ciclo da cana-de-açúcar na zona da mata nordestina, que demandava produtos como a carne e o couro.


Mas o fato mais importante se trata da presença de pecuária na região do sertão e consequentemente a presença de leite. Aqui destaca-se o leite de cabra, amplamente consumido na região. Estes animais se adaptaram bem às características edafoclimáticas locais, proporcionando leite e carne, que ao serem consumidos juntos aos tradicionais produtos à base de milho, fornecem uma dieta satisfatória em termos de proteínas e aminoácidos. Sobre esta dieta o autor diz:


“Usado sob as mais variadas formas, como angu, canjica, cuscuz o milho é quase sempre consumido juntamente com o leite, numa combinação muito feliz, completando a caseína do leite as deficiências em aminoácidos da zeína do milho” (CASTRO, 1984, p. 195).


Sendo assim a presença e manutenção destes animais, ainda que em criações pequenas, é um fator importante para a manutenção de uma dieta satisfatória naquela região, combatendo os quadros de subnutrição grave. É importante notar também que um fator atenuante à fome na região é a seca, que acaba com as reservas forrageiras e consequentemente com as criações.

Outras duas regiões que merecem destaque, até os dias atuais, em termos de produção de leite, são as regiões sudeste e sul. O autor já adianta que nestas áreas, à época, não havia incidência de fome generalizada, muito por conta das criações de bovinos e o consumo de feijão e milho, associado principalmente à carne de porco. Sobre o leite há a seguinte constatação:


“Apesar da criação de gado em grande escala nesta zona, o milho, que é o alimento básico das populações, não se associa preferentemente ao leite, no regime local, mas ao feijão e à gordura de porco, num complexo nutritivo cuja expressão típica é o tutu de feijão mineiro, preparado com farinha de milho, feijão, gordura, toucinho e lombo de porco, complexo alimentar de alto valor calórico..” (CASTRO, 1984, p. 253)


A justificativa para esta não associação do milho com o leite, é por conta da produção da região ser destinada à comercialização, o que diminui o montante utilizado para o consumo das famílias produtoras. Isso ocorria principalmente nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e numa porção do Rio Grande do Sul. Atualmente estes figuram entre os maiores produtores nacionais, com destaque para o território mineiro, maior produtor nacional.


Como consideração final, pode-se perceber a profunda relação de interação dos seres humanos com os animais, especialmente animais domesticados com o intuito voltado para a produção de fontes alimentícias para atender a alimentação humana. Tal dinâmica proporciona uma qualidade melhor dos alimentos da dieta básica da população dos locais estudados.


Fica evidente a melhora da qualidade alimentícia proporcionada pela mistura do leite com os elementos da culinária local, como no caso dos alimentos enriquecidos pelo conjunto da população do sertão nordestino devido a forte presença da criação de animais que produzem leite, o que permite a disponibilidade de alimentos que possam suprir melhor as necessidades alimentícias da população.


Posto isso, tem-se um estudo que demonstra a importância que houve pelo enriquecimento da mistura do leite com outros elementos da cadeia alimentícia da população, o que mostra as diversas possibilidades de buscar o aumento da produção de leite e outras formas de melhorar a cadeia de distribuição deste produto por meio do estabelecimento do fortalecimento dos circuitos regionais de produção.



Referência bibliográfica

CASTRO, Josué Apolônio de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1984.

VILELA, Duarte et al (ed.). PECUÁRIA DE LEITE NO BRASIL: cenários e avanços tecnológicos. Brasília: Embrapa, 2016.


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