Exercer a Medicina Veterinária vai muito além do atendimento de animais de companhia em um consultório, ela engloba as mais diferentes espécies animais, incluindo a humana, e o meio ambiente. A prática dessa profissão, portanto, é imprescindível para garantir a saúde coletiva, sendo a família multiespécie um foco de atuação importante destes profissionais.
A atuação dentro da família multiespécie extrapola os limites do âmbito técnico, sendo necessário mergulhar em questões sociais e de relações entre estes indivíduos. Sabendo da importância e complexidade do tema e da participação expressiva e em expansão dos animais não-humanos nas famílias brasileiras, o Laboratório de Análises Socioeconômicas e Ciência Animal (LAE) da Universidade de São Paulo (USP) trouxe o tema para o Diálogos no LAE.
Os Diálogos no LAE
O Diálogos no LAE é um projeto de extensão universitária que aborda assuntos voltados principalmente aos animais não-humanos e sua relação com os humanos, e objetiva provocar reflexões sobre os temas abordados. Para isto, participam convidados especiais que explanam sobre o tema e, posteriormente, fazem parte de uma roda de conversa e discussão. Este projeto acontece há 20 anos e desde 2020 tem sido realizado de forma remota, permitindo a participação de um maior número de pessoas de diferentes localidades. A participação é sempre gratuita e conta com a emissão de certificado para os participantes.
O que é Família Multiespécie?
Entende-se por “família multiespécie” uma família composta por animais humanos e não-humanos, como cachorro, gato, peixe, porquinho da índia etc.
No dia 20 de outubro de 2022, o convidado, Prof. Dr. Oswaldo Baquero, trouxe reflexões importantes sobre famílias multiespécies. Organizador do livro “Comunidades e famílias multiespécies: aportes à Saúde Única em periferias” (livre acesso), Baquero se referiu à família como um "coletivo multiespécie, dispositivo de marginalização e entidade de reprodução social, no qual a saúde é vivenciada, entendida e transformada".
Margens são responsáveis por delimitar, excluir e incluir. A marginalização, portanto, é uma prática biopolítica que garante a separação entre viventes que usufruem de privilégios e outros que são marginalizados e explorados para manter tais privilégios. Os modos de vida disponíveis para o indivíduo dependem de sua espécie e dos interesses humanos predominantes sobre estes animais não-humanos, sendo o especismo um dispositivo marginalizante que distingue espécies e considera humanos superiores às demais espécies (antropocentrismo).
O termo “família” tem origem na palavra famulus, do latim, escravo, indivíduo marginalizado que permitia uns se beneficiarem da exploração de outros. A concepção de família, portanto, foi sendo construída ao longo do tempo, inicialmente estando relacionada à criados que moravam na casa dos senhores. Hoje é fortemente atrelada a consanguinidade e relação conjugal de marido, esposa e filhos, ainda envolvendo relações de poder e dominação.
Para Baquero, “a família é qualquer coisa menos um arranjo natural, indiscutível, a ser defendido a qualquer custo; pois a família e estruturas hierárquicas de dominação e opressão são duas coisas fortemente associadas”. Sendo assim, a configuração multiespécie da família está atrelada a relações hierárquicas e de opressão. Obviamente existe afeto dentro destas relações, e é a justifica mais utilizada quando o assunto é abordado.
Contudo, infelizmente, toda a estrutura desenvolvida até os dias atuais não foi superada. “Basta lembrar que no Brasil há um feminicídio a cada 7 horas, sendo quase todos causados pelos companheiros. Mais de duas crianças são vítimas de violência doméstica por hora, só considerando as que sofrem agressões físicas”, ressalta Oswaldo. O fato de estar dentro da família não suspende a marginalização dos indivíduos, é uma exclusão inclusiva.
Entender essas relações é importante pois, assim como mulheres e crianças são marginalizadas na estrutura familiar desenvolvida até os dias atuais, os animais não-humanos também ocupam este local de marginalização. Entendemos isso quando pensamos que animais são comprados e vendidos, assim como abandonados por muitas famílias.
Compreender a estrutura de família predominantemente vigente é essencial para a atuação dos profissionais em prol do bem-estar e saúde animal e pública, visto que essas relações determinam a forma de tratamento dos animais na sociedade e as condições às quais eles são submetidos.
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